"Aula de Filosofia" Daniella Paula Oliveira

Esse é um texto da escritora cuiabana Daniella Paula Oliveira (já bem conhecida por aqui...).

Com ela desenvolvo o projeto A Mandala e a Palavra, é colaboradora do blog e amiga nos demais trabalhos, na arte e na escrita. Premiada diversas vezes com as suas crônicas, contos e poesia, Daniella também se arrisca na filosofia...




Aula de Filosofia

Vou clamar a um livro desconhecido, que me tome em seus braços e me prenda o olhar até eu entrar em êxtase e fundir-me a ele.
Posso também clamar pela a terra, para que ela se aglutine as minhas veias sanguíneas, tornando-me pó. Livro ou pó? Enfim, tudo o mais se transforma ou em livro ou em pó.
Enquanto divago nesses pensamentos sem corpo, o professor de filosofia fala sobre a teoria de Nietzsche onde Deus está morto. Virou pó e depois livro. Virou livro depois pó.
Quando Deus estava vivo, ele morava em mim. Comia as mesmas coisas que eu comia, e nessa época eu comia muita carne, meu estômago era um verdadeiro cemitério. E bebia muita bebida alcoólica e fumava e roia as unhas. Ele suportava tudo com predestinação. Como se tivesse que suportar aquilo para ser o deus que me habitava.
Eu lia para ele Proust. Proust fez dos seus olhos caídos e do seu ar ressequido, poesia. Fez da tristeza a literatura. Lia também Sartre, Beauvoir e comentava com ele sobre o relacionamento deles; dizia que não os considero libertinos, mas libertos. Embora também dissesse que nenhum deles era feliz.
- Professor, o que é felicidade? – Não me contive a perguntar, e obtive como resposta uma indagação: O que é felicidade para você?
É claro que com essa pergunta, ele queria me estimular a pensar sobre isso, além de demonstrar a relatividade da felicidade.
Um dia, antes de Nietzsche matar o Deus, eu o indaguei sobre as relatividades. Por que tudo tem que ser relativo? Até o amor é relativo. Poderíamos viver na igualdade de sentimentos, no equilíbrio de todas as questões. Mas o Deus me respondeu, mostrando-me, que esse desejo não é absoluto, portanto, é relativo. Tem gente querendo sentir tudo diferente.
O professor agora fala sobre a beleza. Cita Aristóteles, Confúcio, Voltaire e até Bilac. E eu caio novamente na relatividade. Considero a minha avó a pessoa mais bonita que já habitou a Terra. E eu já tenho a imagem dela, com longos cabelos brancos, nariz meio negro meio aportuguesado, rosto cheio de fortes traços, muitas cicatrizes, lábios sem volumes, corpo curvado e profundas olheiras circundando os seus maravilhosos olhos azuis. Sem dúvida, na minha relatividade, ela era linda.
Assim como pode ser belo o caminhar lento da lesma, o sangue branco da barata, santos barrocos com as cabeças quebradas, aranhas suspensas em suas teias, pés sem curvas, ruído de vento e uivo de cachorro em noite de lua cheia e até o fustigar da palavra sobre o ar.
- Professor, como será que Aristóteles descreveria a beleza da minha avó? – Não sei ao certo porque fiz essa pergunta. Acho que é porque não consegui descrever com maestria a beleza da minha avó. Acho que Aristóteles também não conseguiria. Ela nos escapa.
Fiquei mais uma vez sem resposta. E um olhar controvertido ocorreu entre mim e ele. Senti nesse momento uma luz do belo, como o silêncio querendo dar resposta, como a filosofia ajoelhando aos pés do indizível, do incabível, do indescritível.
- A sua avó deve ter sido uma bela mulher dentro da sua concepção de beleza. – Foi o que ele disse, após sofrer a ausência de rumor dos pensamentos e o ensejo gracioso do sentir. Continuou: - Por isso, não se preocupe com a descrição de Aristóteles sobre ela; seja você a filósofa.
“Seja você a filósofa... Seja você a filósofa... Seja você a filósofa...”. Ficou ressoando em meus nervos frágeis e enleados. Mas como? Eu uso mais do sentimento que da razão. Ou não? Há mais razão ou mais sentimento no sentir? Pois ante os ditames da razão ou sentimento, eu fico mesmo é com o sentir.
- Professor, posso ser uma filósofa apenas sentindo? – Como era de se esperar, ele fez um longo discurso sobre a lógica e a razão da filosofia.
- Sentir apenas não basta... – Ele discursava na sua branda eloqüência.
Deduzi, porquanto, que não posso ser a filósofa. Meu sentir é maior que a minha razão e minha emoção, e era por isso que eu desejava tornar-me pó ou livro. Por sentir, que tudo o mais se transforma em pó e em/ou livro. E se fôssemos colocar a razão nisso, os livros perderia o encanto e o pó não passaria de pó.
Certa vez, li sobre a eternidade. E dentre todas as definições que li, consta-me o pó. E o livro também. O pó é a própria eternidade e o livro é aquele que fala dela. E ambos se fundem.
- Professor sabia que quando o Deus estava vivo ela morava em mim?
- E por que você o matou?
- Não fui eu, foi Nietzsche. Eu não o matei, assim, exatamente como ele fez. Eu o adormeci em meu colo cansado, em minhas mãos exauridas de acariciá-lo, em meu suor transposto, em minha mente insone que velava o seu sono eterno, em minha alma dissipada pelo o seu suposto imenso amor. Eu o adormeci em mim. Mas às vezes ele desperta, toca o meu umbigo, faz-me sorrir de cócegas; e também me faz chorar de dor, quando aguça a minha sensibilidade para ver além da linha do horizonte, além do sangue derramado, além do sonho despertado...
Fez-se um silêncio mais branco que as minhas palavras na sala. A aula fugiu do concreto da razão, e foi voar com o deus morto ou adormecido de cada um. E nesse momento, o Deus reviveu e atordoou o nosso interno, o nosso íntimo, o nosso colossal humano de entranhas duvidosas. O silêncio era o Deus de cada um falando, expurgando, filosofando...
Era como se a germinação de toda a existência fluísse nos instantes e nas lacunas deixadas pela Filosofia. Como se os deuses que abençoara Sócrates, Platão, Aristóteles, os mesmos deuses que se permitiram morrer para Nietzsche, tivessem virado sementes em nós, mostrando-nos que sentir o barulho silencioso do germinar é mais significante que a própria nobreza de pensar sobre a criação. Mostrando-nos que a ciência do sentir é o filósofo que habita todos nós.
O sinal, que indica as horas e suas esporas, tocou. Era o fim da aula de Filosofia. Era o início de sentir durante o filosofar.

11 Response to ""Aula de Filosofia" Daniella Paula Oliveira"

  1. Unknown Says:

    Lindo demais. Profundo e forte. Se arrisca com majestude, sutileza e total. Deve se arriscar mais vezes.
    Adorei.

  2. Mariah Says:

    Simone, estou devidamente encantada e surpreendida com esse texto. Li todos os demais textos dessa escritora por aqui, sobre as mandalas. Tão divinos,autorealizadores, com comunhão com uma força assim, grandona. Agora me deparo com um texto existencial e maravilhoso! O das mandalas tbm são, adoro. Mas esse foge aos que já havia lido.
    bom saber que ela é colaboradora do blog, deixa aqui ainda mais encantador e literário.
    me passe seus contatos quando puder.

    Luz,
    Mariah

  3. Unknown Says:

    A Dani é minha prima. E é isso... É luz, é inteligência nata e sem esforço, é delicadeza, é cultura, é sorriso, é força... Dani é espírito de luz mesmo. Um anjo que a gente fica pedindo pra aparecer nas nossas vidas e aqueles que possui pedimos que nunca perca.
    E essa exímia escritora, na qual, não tenho dúvidas que muito a estudaremos ainda, que a leremos ainda.
    É uma honra ter esse DNA! É uma honra saber que mesmo com o contato escasso, ela me ama e eu a amo e que eu posso ler suas cosas sempre.
    Simone, suas mandalas são maravilhosos. Eu gostei muito, muito. Aprendi a arte de apreciar com a Dani, a dani, alias, é minha guru em muitas coisas, e estou encantada com o seu trabalho.
    Parabéns.
    Beijos

  4. Atena Says:

    Daniella:
    Estou aqui de olhos marejados e sem palavras que sejam suficientes para exprimir tudo o que seu texto me passou.
    Não vou comentá-lo, não consigo, mas peço-lhe permissão para colocar um link do mesmo em meu blog.
    É um texto para ser partilhado e amado por quantos mais, melhor.
    Bênçãos de meu Deus interno para você,
    Atena

  5. Eduardo Medeiros Says:

    oi simone, tudo bem? que belo blog você tem aqui!! e esse texto então, viajei nele...

    "Professor, posso ser uma filósofa apenas sentindo?"

    pois eu tenho certeza que pode. o que seria a razão sem o sentimento? a razão não tem alma...

    deus morto? ah, que ilusão essa...se ele sempre aparece para tomar um café!

    daniella, adorei tua escrita, tua inteligência e tua sensibilidade.

    abraços

  6. Anônimo Says:

    Oi, Dani e Simone!

    Acho que a razão levada as últimas consequencias induz ao silêncio. Nesse silencio o sentir se faz mais forte, simplesmente por que a razão esgotou a si mesma.

    Normalmente são os homens que fazem esse exercício para silenciar (na maior parte das vezes inconscientemente), mas a mulher já carrega o silêncio em seu ventre.

    Homens não tem útero, então, tentam parir Atena pela cabeça.

    As mandalas são úteros vibrantes, parindo a beleza!

    Beijos,

    F.A.

  7. Greci Says:

    Gente! Isso é demais, tô sem fôlego.
    Que texto mais mais... nem sei. É sublime.

  8. MARCELO DALLA Says:

    Adorei o texto!!! Há que se buscar um equilíbrio entre o sentir e o filosofar. Entre razão e intuição. Entre o masculino e o feminino. O caminho do meio!!!
    bjosssssssssssss

  9. Paulo Says:

    " eu já tenho a imagem dela, com longos cabelos brancos, nariz meio negro meio aportuguesado, rosto cheio de fortes traços, muitas cicatrizes, lábios sem volumes, corpo curvado e profundas olheiras circundando os seus maravilhosos olhos azuis. Sem dúvida, na minha relatividade, ela era linda."

    Você é maravilhosa, Dani.
    Muito maravilhosa!

  10. Eliza Nunes Says:

    Dani, sua bandida, por que não me mostrou esse seu texto antes? Eu deveria ser a primeira a ler. ahaha......
    Filosofia pura. Pensamento nato. Inteligência além.
    Cada dia mais sou sua fã; deixa-me chegar de viagem que a gente conversa, quero levá-lo para a Escola, pra discussão em grupo. E nem vou perguntar se vc deixa.

    Meninas, parabéns mais uma vez!

    Grande abraço,
    Eliza

  11. Eliza Nunes Says:

    E já ia me esquecendo
    Eu espero que vc tenha guardado a minha mandala.

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